3 de dez. de 2020

A noite da espera - Milton Hatoum

    A noite da espera, o novo livro de Milton Hatoum lançado no final de 2017 pela Companhia das Letras, nove anos após a publicação de Órfãos do Eldorado, sua obra anterior, se passa principalmente na Brasília recém inaugurada da década de 1960 e tem como pano de fundo o contexto histórico vivido pelos brasileiros no período da ditadura militar. É o primeiro livro de uma trilogia intitulada O lugar mais sombrio, cujo segundo volume, Pontos de Fuga, também fora recentemente publicado; a terceira parte da trilogia deve sair nos próximos anos.
    A escolha por lançar a longa narrativa em três livros separados, provavelmente, deveu-se ao fato de que caso fosse lançada num só volume resultaria numa obra de mais de 800 páginas, o que dificultaria um pouco a leitura e a própria comercialização. O primeiro volume da trilogia, A noite da espera, é uma obra de 240 páginas e trata-se daquilo que os alemães chamam de Bildungsroman, romances que narram o processo de maturação física, espiritual, psicológica, social e cultural de um personagem, desde sua infância e/ou adolescência até a idade adulta. É o que chamamos em português de romance de formação ou romance de desenvolvimento.
    O próprio Milton Hatoum, em entrevista ao Estadão, admite: “é, de fato, um romance de formação...e com um forte fator externo, que foi a presença militar durante a ditadura, e o fator interno, que move o romance: o drama de Martim, baseado na ruptura com a mãe e a difícil relação do pai...esse relacionamento é um dos lugares mais sombrios do livro.”
    Diferentemente das obras anteriores de Hatoum, que tinham como cenário principal a cidade de Manaus, local de nascimento do autor, A noite da espera se passa principalmente em Brasília nos anos 1960. Justamente neste período o escritor viveu naquela cidade, tendo estudado no Colégio de Aplicação da Universidade de Brasília (UnB) de 1967 a 1969, antes de se mudar pra São Paulo, onde foi cursar Arquitetura. Brasília, portanto, fez parte da formação pessoal, intelectual e afetiva de Milton Hatoum, deixando no autor profundas impressões que agora ele traz, de certa forma, para as páginas do romance.
    O livro se inicia com o jovem Martim já em Paris no ano de 1977. Recém exilado, nos intervalos das aulas particulares que ministra a franceses interessados na língua portuguesa e na literatura brasileira, o protagonista revisita anotações e cartas que escreveu no período em que esteve em Brasília. Essas cartas e anotações vão sendo apresentadas ao leitor ao longo do livro, num formato que por vezes nos lembra um diário, e vão construindo a história pouco a pouco, de forma fragmentada.
    Depois da separação dos pais, em 1968, Martim, então com 16 anos e na companhia do pai, muda-se de São Paulo para Brasília. Sua mãe, com quem sua relação afetiva era mais forte, muda-se, juntamente com um artista que passou a namorar após o término do relacionamento com o pai, para um lugar desconhecido. Na capital recém-criada, Martim vai construindo seu cotidiano, marcado pela relação árida e distante que mantém com o pai, pela saudade da mãe, pelas amizades que vai fazendo no colégio, tudo permeado pelo clima tenso da ditadura militar.
    Martim vai se envolvendo com a cidade de forma lenta e passa a fazer parte de uma turma de estudantes engajados, que além de montar peças de teatro também publica mensalmente uma revista de resistência ao regime militar. Numa crescente que revela seu desenvolvimento e sua formação rumo à maturidade, inicia o contato com o grupo de forma tímida e depois vai desenvolvendo as amizades e, inclusive, o namoro com Dinah. Apesar do entrosamento com os colegas ir melhorando, Martim parece sempre se manter meio alheio à empolgação e ao entusiasmo do grupo enquanto resistência ao regime. Mas esse relativo distanciamento não faz com que o protagonista se livre da perseguição imposta pelo governo a estudantes, intelectuais e artistas. Na reta final da trama o exílio deixa de ser uma opção e passa a ser necessário, inclusive para Martim. Os desdobramentos dessa expatriação, provavelmente veremos nos próximos volumes da trilogia.
    Um aspecto interessante no livro são as referências à literatura, às artes plásticas e à cultura geral que Hatoum nos traz através de alguns personagens. Em contato com Jorge Alegre, dono da livraria Encontro, e com o embaixador Faisão, pai de um amigo, Martim vai descobrindo poetas, romancistas, filósofos, pintores. Além de nos brindar com essas referências, o autor também homenageia personalidades que certamente foram importantes em sua formação enquanto escritor.

    A noite da espera, no quesito experimentação, nos traz um Milton Hatoum ainda mais seguro e ousado do que nas obras anteriores. O autor se dá o direito de experimentar, fazendo esse livro em formato de diário. Quanto à contemporaneidade da obra, que parece ter sido escrita justamente nos anos imediatamente anteriores a esses momentos sombrios vividos pela sociedade brasileira desde meados de 2016, que se vê ameaçada em vários momentos pelo fantasma da ditadura e da repressão, o que ocorreu de fato foi uma coincidência feliz. Coincidência sim, pois a obra foi iniciada há décadas e só agora terminada. Coincidência feliz, sim, pois nesses tempos de trevas, uma obra dessa nos traz esperança, pois nos lembra que já passamos por períodos históricos tão nefastos como o que estamos vivendo agora e superamos.