30 de nov. de 2018

O filho eterno

Escapei desse livro mais de uma vez. Passando os olhos pelas estantes das livrarias, tateei a bem acabada publicação da editora Record em algumas ocasiões. O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza. O título chamava a atenção e havia em mim alguma curiosidade pelo autor, sobre o qual eu já havia lido ou ouvido algo a respeito. Em 07/10/2017, enfim, num passeio com a esposa grávida (ainda não sabíamos da novidade) pela Livraria Empório Cultural no Shopping Boulevard Bauru, comprei o livro. Era uma manhã nublada de um sábado primaveril. A fase chuvosa do ano chegara e a leitura me chamava. Eu precisava muito disso e sabia que havia chegado a hora.

Durante alguns dias, carreguei o livro comigo pra onde quer que eu fosse. Lembro de um passeio no SESC Araraquara, em que cheguei antes da hora de abertura do espaço e fiquei  lendo enquanto aguardava, dentro do carro estacionado na rua lateral, sob uma árvore gostosa. Lembro também de um domingo de manhã em que fiquei lendo sentado num dos bancos rotos do Parque Infantil enquanto os aspirantes a atleta davam voltas em torno do parque. Lembro de vários trechos lidos em voz alta pra esposa grávida (agora já sabíamos!) e dos medos que as páginas nos traziam, já que estávamos a esperar um bebê ainda de poucos meses.

O livro conta a história de um aspirante a escritor (o próprio Tezza, vestido de personagem de sua própria obra) que tem um filho com Síndrome de Down. A doença só é descoberta após o nascimento da criança e o choque inicial é terrível. Aos poucos, porém,  a dificuldade em lidar com a situação, narrada em terceira pessoa de forma nua e crua, vai dando lugar a um amor crescente. O desespero do pai na cena em que o filho escapa para a rua e fica desaparecido por alguns instantes é de derreter corações gelados. A partir dali o pai percebe o quanto ama aquele filho diferente. Aquele filho eterno.

Levei um mês pra concluir a leitura, entre 07/10 e 07/11/2017. Não li com a mesma voracidade da infância e adolescência, nem com a mesma displicência da juventude. Li devagar, saboreando, parando de propósito, mesmo quando a vontade era continuar, pra poder prorrogar o tempo de prazer e solidão. Li com sabedoria, com experiência, vivenciando cada página, identificando aqui e ali semelhanças entre o pai, sem nome na história, e eu. Li deixando marcadores nas páginas mais mágicas, pra poder voltar depois e reler, certificando-me de que realmente aquilo se encaixava tanto ao meu sentimento e à minha razão que poderia ter sido escrito por mim mesmo, caso eu tivesse esse talento. Chorei ao terminar o último capítulo. Foi um choro contido, maduro e conformado. Um choro de quem vem desfrutando o prazer da maturidade e volta a se emocionar como uma criança que descobre no prazer da leitura um mundo sem tamanho e tão interessante quanto à vida real.

29 de nov. de 2018

Lorde - João Gilberto Noll

Um escritor brasileiro é convidado por uma instituição educacional da Inglaterra a passar uma temporada em Londres. As passagens aéreas serão pagas pela instituição, assim como a hospedagem na cidade inglesa, além da alimentação, bancada através de uma pequena mesada. Tudo muito legal, exceto pelo fato de que o escritor brasileiro não sabe ou não entendeu exatamente qual será sua missão no exterior. Não obstante, ele vai.

Um começo assim poderia nos remeter a uma história de mistério, ou a um romance policial. A viagem do personagem de Noll (que certamente tem algo de autobiográfico), entretanto, é solitária e intimista. A narração é introspectiva e nos traz unicamente a impressão que o protagonista-narrador tem das situações, misturando a realidade que ele vê e vive com as coisas que ele pensa e imagina. Algo bem nebuloso, obscuro e, não poucas vezes, irreal ou surreal.

Chegando ao aeroporto de Heathrow, o viajante brasileiro nem tem certeza se realmente o inglês representante da instituição que o contatou estará ali esperando.  Encontra um telefone público, mas antes de completar a ligação, percebe que o anfitrião está ali mesmo, aguardando. Cumprimentam-se e partem de trem para a área central da cidade e, a partir dali, de táxi para o local onde o brasileiro ficará hospedado, um apartamento em cima de um restaurante vietnamita, numa esquina do Hackney, bairro londrino habitado por imigrantes do terceiro mundo, pedaço da cidade não contemplado nos mapas turísticos.

Os primeiros dias do narrador-protagonista em Londres são, a meu ver, de relativa lucidez. Ele tenta se organizar no apartamento. Compra um espelho que pendura na parede do banheiro, sobre a banheira. Sente-se incomodado com a cara que aparece ali, envelhecida e cansada. Resolve comprar um kit de maquiagem pra dar uma retocada na carcaça. Não satisfeito, tinge o cabelo. Qual o desejo desse homem? Aproveitar essa estada num país distante pra se transformar, pra ser uma nova pessoa? Quem de nós nunca teve esse desejo ao fazer uma viagem ou ao mudar de cidade? Pois é!   

No decorrer do livro a pequena lucidez inicial se dilui até desaparecer e dar lugar a uma esquizofrenia surreal, ao mesmo tempo em que o próprio personagem vai se degradando. Certo dia o anfitrião inglês aparece no apartamento e diz pro escritor brasileiro não se preocupar, pois será levado a um hospital. O protagonista fica sendo medicado por algumas horas. Sai do hospital e entra no Museu Britânico. Volta pro apartamento em Hackney. O vietnamita, dono do apartamento, bate à porta e diz que veio medir a janela, pois providenciará uma cortina. Depois, saído de um sono profundo, o protagonista abre a geladeira, toma água pelo gargalo e repara que está num momento de ereção, após muito tempo; ali mesmo, se alivia em três, quatro socadas. Essa é a linguagem de Noll. Segundo ele mesmo, a literatura deve sim se ocupar daquelas coisas escondidas no dia a dia das pessoas; a literatura deve falar o que nas relações cotidianas não se diz.

 Em certo momento, e é difícil precisar a ordem dos acontecimentos na obra - já que não se sabe se as ocorrências se passam num tempo cronológico ou num tempo psicológico-, o telefone toca e um certo professor Mark fala ao outro lado da linha, dizendo que gostaria de uma entrevista com o escritor brasileiro, convidando-o a fazer-lhe uma visita. O professor topa e parte ao endereço indicado, uma rua que continua após a London Bridge, na parte sul da cidade. Antes de partir, porém, vira o espelho ao contrário, como se a daquele momento em diante não quisesse mais saber exatamente quem era, ou quem havia sido até então.  Na casa do professor Mark, eles tomam chá na sala. O inglês diz que soube através de um amigo da vinda do brasileiro a Londres, diz que precisa de um banho e pede que o protagonista o acompanhe e que entre na banheira com ele, ao que o brasileiro chora e diz que não saberia dividir sua nudez com ninguém. O choro, nesse ponto, me parece simbolizar alguém reprimido que já se descobriu homossexual, no caso, mas não consegue se libertar e vivenciar a experiência que o corpo está pedindo.

Sai transtornado da casa do professor Mark e vaga pela cidade, encontrando um mendigo à beira da morte. Tenta ajudar e sai com o cachecol molhado da chuva e  do sangue do mendigo. Passa dias perambulando pelas ruas de Londres, correndo atrás de pombos na Piccadilly Circus até que resolve ir até a instituição que lhe convidara para essa estada na cidade. Fica ali a observar e não entra. E resolve voltar à Hackney. Chegando ao apartamento, vê que o inglês que o encontrou no aeroporto, seu anfitrião, está ali jantando com uma mulher. Dorme num canto da sala para que o inglês e a amante possam usufruir do quarto com cama de casal. Na manhã seguinte, a dupla já abandonou a casa. Dias depois o protagonista fica doente, de cama, e o anfitrião fica a cuidar dele por dias, dando-lhe comida na boca, limpando inclusive suas partes íntimas. Posteriormente esse mesmo inglês se suicida, jogando-se de uma ponte no Tâmisa. Sem seu provedor em Londres, o brasileiro resolve abandonar a cidade. Rouba um homem no metrô e com o dinheiro adquirido parte pra Liverpool, onde fica hospedado num hotel chique. É reconhecido na rua por um leitor que conhece obras latino-americanas. É convidado para dar aula na Universidade da Cidade de Liverpool. Num pub conhece George, um ex-estivador de fato ou imaginário e finalmente leva a cabo uma relação homossexual (real ou imaginária? com o outro ou com ele mesmo?). 

São várias ocorrências simbólicas e essenciais pra um livro de cento e poucas páginas. É difícil resumir. Qual o significado dessa obra? Há todo um simbolismo que nos leva a algum lugar ou se trata apenas de um esquizofrênico falando de coisas da vida segundo sua percepção absolutamente distorcida de mundo? Não consigo saber. Confesso que a leitura de Lorde não foi tão prazerosa quanto a de Harmada, mas foi, seguramente, mais impactante. Noll veio pra ficar em minha vida.

   





   

20 de nov. de 2018

Mãos de Cavalo - Daniel Galera

Meu primeiro contato com a escrita de Daniel Galera foi através do seu Mãos de Cavalo. Na época em que li (2008 ou 2009, acho) eu era frequentador constante do SESC Araraquara. Pegava a bicicleta e saía da Avenida Augusto de Campos, quase no extremo leste da cidade, rumo ao SESC, lá do outro lado do mapa (pouco mais de 6 km, vejo agora). Prendia a bike com a corrente envolta por uma proteção de borracha de mangueira feita pelo meu pai no bicicletário do clube e ia até a biblioteca dar uma folheada nos jornais.

Num desses dias passei os olhos com atenção pelos livros disponíveis para retirada na parte da estante de madeira reservada à literatura nacional. O título Mãos de Cavalo me chamou a atenção imediatamente. Retirei-o da prateleira e a arte da capa¹, que a princípio me pareceu a imagem de um retorcido emaranhado de ossos secos, me arrebatou de vez. Peguei o livro emprestado.

A leitura do primeiro capítulo, O Ciclista Urbano, não fluiu fácil de primeira. A riqueza de detalhes me fez resistir por breve momento. Fazia tempo que não me entregava de verdade a um livro e acho que aquela resistência inicial pode ter sido uma espécie de auto boicote ou de fuga. Livros podem doer, podem deixar marcas pra sempre, podem mudar rumos e nos levar pra caminhos e paisagens que não estamos preparados pra percorrer e ver.


Depois que a leitura engrenou, entretanto, eu poderia ter lido tudo numa tacada só. Mas demorei alguns dias, pra poder digerir bem os capítulos tão ricos em imagens e tão chocantes. Lia um capítulo, repassava, ficava degustando as sensações trazidas, cicatrizando os impactos e depois seguia em frente. Levei uma semana ou dez dias pra terminar as duzentas páginas nesse saborear sofrido.


Hermano, o protagonista, é retratado no livro em três fases da sua vida (infância, adolescência e vida adulta). A história vai e volta. Pula da infância pra adolescência e pra vida adulta (não necessariamente nessa ordem), depois volta e assim por diante.


Me envolvi muito com a história. A jornada de Hermano em busca de identidade e, posteriormente, de redenção, é, certamente, e de certa forma, a jornada de todos nós, criados nos anos oitenta, nas capitais ou no interior. Desde sua versão criança - desbravando a parte que lhe cabe da Porto Alegre de sua infância perigosamente montado em uma bike - passando por sua versão adolescente - que numa partida de futebol entra de sola no vilão do momento e depois se acovarda - fechando em sua versão adulta - profissionalmente bem sucedido - a busca de identidade e sentido nunca cessou. Será que em nossas vidas reais essa busca e necessidade um dia cessará? Continuemos vivendo a vida e os livros! Esse Mãos de Cavalo vale a pena!


1-A capa, na verdade, é a foto de galhos - e não de ossos -, retirada dos arquivos do fotógrafo americano já falecido Brett Weston