29 de nov. de 2018

Lorde - João Gilberto Noll

Um escritor brasileiro é convidado por uma instituição educacional da Inglaterra a passar uma temporada em Londres. As passagens aéreas serão pagas pela instituição, assim como a hospedagem na cidade inglesa, além da alimentação, bancada através de uma pequena mesada. Tudo muito legal, exceto pelo fato de que o escritor brasileiro não sabe ou não entendeu exatamente qual será sua missão no exterior. Não obstante, ele vai.

Um começo assim poderia nos remeter a uma história de mistério, ou a um romance policial. A viagem do personagem de Noll (que certamente tem algo de autobiográfico), entretanto, é solitária e intimista. A narração é introspectiva e nos traz unicamente a impressão que o protagonista-narrador tem das situações, misturando a realidade que ele vê e vive com as coisas que ele pensa e imagina. Algo bem nebuloso, obscuro e, não poucas vezes, irreal ou surreal.

Chegando ao aeroporto de Heathrow, o viajante brasileiro nem tem certeza se realmente o inglês representante da instituição que o contatou estará ali esperando.  Encontra um telefone público, mas antes de completar a ligação, percebe que o anfitrião está ali mesmo, aguardando. Cumprimentam-se e partem de trem para a área central da cidade e, a partir dali, de táxi para o local onde o brasileiro ficará hospedado, um apartamento em cima de um restaurante vietnamita, numa esquina do Hackney, bairro londrino habitado por imigrantes do terceiro mundo, pedaço da cidade não contemplado nos mapas turísticos.

Os primeiros dias do narrador-protagonista em Londres são, a meu ver, de relativa lucidez. Ele tenta se organizar no apartamento. Compra um espelho que pendura na parede do banheiro, sobre a banheira. Sente-se incomodado com a cara que aparece ali, envelhecida e cansada. Resolve comprar um kit de maquiagem pra dar uma retocada na carcaça. Não satisfeito, tinge o cabelo. Qual o desejo desse homem? Aproveitar essa estada num país distante pra se transformar, pra ser uma nova pessoa? Quem de nós nunca teve esse desejo ao fazer uma viagem ou ao mudar de cidade? Pois é!   

No decorrer do livro a pequena lucidez inicial se dilui até desaparecer e dar lugar a uma esquizofrenia surreal, ao mesmo tempo em que o próprio personagem vai se degradando. Certo dia o anfitrião inglês aparece no apartamento e diz pro escritor brasileiro não se preocupar, pois será levado a um hospital. O protagonista fica sendo medicado por algumas horas. Sai do hospital e entra no Museu Britânico. Volta pro apartamento em Hackney. O vietnamita, dono do apartamento, bate à porta e diz que veio medir a janela, pois providenciará uma cortina. Depois, saído de um sono profundo, o protagonista abre a geladeira, toma água pelo gargalo e repara que está num momento de ereção, após muito tempo; ali mesmo, se alivia em três, quatro socadas. Essa é a linguagem de Noll. Segundo ele mesmo, a literatura deve sim se ocupar daquelas coisas escondidas no dia a dia das pessoas; a literatura deve falar o que nas relações cotidianas não se diz.

 Em certo momento, e é difícil precisar a ordem dos acontecimentos na obra - já que não se sabe se as ocorrências se passam num tempo cronológico ou num tempo psicológico-, o telefone toca e um certo professor Mark fala ao outro lado da linha, dizendo que gostaria de uma entrevista com o escritor brasileiro, convidando-o a fazer-lhe uma visita. O professor topa e parte ao endereço indicado, uma rua que continua após a London Bridge, na parte sul da cidade. Antes de partir, porém, vira o espelho ao contrário, como se a daquele momento em diante não quisesse mais saber exatamente quem era, ou quem havia sido até então.  Na casa do professor Mark, eles tomam chá na sala. O inglês diz que soube através de um amigo da vinda do brasileiro a Londres, diz que precisa de um banho e pede que o protagonista o acompanhe e que entre na banheira com ele, ao que o brasileiro chora e diz que não saberia dividir sua nudez com ninguém. O choro, nesse ponto, me parece simbolizar alguém reprimido que já se descobriu homossexual, no caso, mas não consegue se libertar e vivenciar a experiência que o corpo está pedindo.

Sai transtornado da casa do professor Mark e vaga pela cidade, encontrando um mendigo à beira da morte. Tenta ajudar e sai com o cachecol molhado da chuva e  do sangue do mendigo. Passa dias perambulando pelas ruas de Londres, correndo atrás de pombos na Piccadilly Circus até que resolve ir até a instituição que lhe convidara para essa estada na cidade. Fica ali a observar e não entra. E resolve voltar à Hackney. Chegando ao apartamento, vê que o inglês que o encontrou no aeroporto, seu anfitrião, está ali jantando com uma mulher. Dorme num canto da sala para que o inglês e a amante possam usufruir do quarto com cama de casal. Na manhã seguinte, a dupla já abandonou a casa. Dias depois o protagonista fica doente, de cama, e o anfitrião fica a cuidar dele por dias, dando-lhe comida na boca, limpando inclusive suas partes íntimas. Posteriormente esse mesmo inglês se suicida, jogando-se de uma ponte no Tâmisa. Sem seu provedor em Londres, o brasileiro resolve abandonar a cidade. Rouba um homem no metrô e com o dinheiro adquirido parte pra Liverpool, onde fica hospedado num hotel chique. É reconhecido na rua por um leitor que conhece obras latino-americanas. É convidado para dar aula na Universidade da Cidade de Liverpool. Num pub conhece George, um ex-estivador de fato ou imaginário e finalmente leva a cabo uma relação homossexual (real ou imaginária? com o outro ou com ele mesmo?). 

São várias ocorrências simbólicas e essenciais pra um livro de cento e poucas páginas. É difícil resumir. Qual o significado dessa obra? Há todo um simbolismo que nos leva a algum lugar ou se trata apenas de um esquizofrênico falando de coisas da vida segundo sua percepção absolutamente distorcida de mundo? Não consigo saber. Confesso que a leitura de Lorde não foi tão prazerosa quanto a de Harmada, mas foi, seguramente, mais impactante. Noll veio pra ficar em minha vida.

   





   

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