3 de dez. de 2020

A noite da espera - Milton Hatoum

    A noite da espera, o novo livro de Milton Hatoum lançado no final de 2017 pela Companhia das Letras, nove anos após a publicação de Órfãos do Eldorado, sua obra anterior, se passa principalmente na Brasília recém inaugurada da década de 1960 e tem como pano de fundo o contexto histórico vivido pelos brasileiros no período da ditadura militar. É o primeiro livro de uma trilogia intitulada O lugar mais sombrio, cujo segundo volume, Pontos de Fuga, também fora recentemente publicado; a terceira parte da trilogia deve sair nos próximos anos.
    A escolha por lançar a longa narrativa em três livros separados, provavelmente, deveu-se ao fato de que caso fosse lançada num só volume resultaria numa obra de mais de 800 páginas, o que dificultaria um pouco a leitura e a própria comercialização. O primeiro volume da trilogia, A noite da espera, é uma obra de 240 páginas e trata-se daquilo que os alemães chamam de Bildungsroman, romances que narram o processo de maturação física, espiritual, psicológica, social e cultural de um personagem, desde sua infância e/ou adolescência até a idade adulta. É o que chamamos em português de romance de formação ou romance de desenvolvimento.
    O próprio Milton Hatoum, em entrevista ao Estadão, admite: “é, de fato, um romance de formação...e com um forte fator externo, que foi a presença militar durante a ditadura, e o fator interno, que move o romance: o drama de Martim, baseado na ruptura com a mãe e a difícil relação do pai...esse relacionamento é um dos lugares mais sombrios do livro.”
    Diferentemente das obras anteriores de Hatoum, que tinham como cenário principal a cidade de Manaus, local de nascimento do autor, A noite da espera se passa principalmente em Brasília nos anos 1960. Justamente neste período o escritor viveu naquela cidade, tendo estudado no Colégio de Aplicação da Universidade de Brasília (UnB) de 1967 a 1969, antes de se mudar pra São Paulo, onde foi cursar Arquitetura. Brasília, portanto, fez parte da formação pessoal, intelectual e afetiva de Milton Hatoum, deixando no autor profundas impressões que agora ele traz, de certa forma, para as páginas do romance.
    O livro se inicia com o jovem Martim já em Paris no ano de 1977. Recém exilado, nos intervalos das aulas particulares que ministra a franceses interessados na língua portuguesa e na literatura brasileira, o protagonista revisita anotações e cartas que escreveu no período em que esteve em Brasília. Essas cartas e anotações vão sendo apresentadas ao leitor ao longo do livro, num formato que por vezes nos lembra um diário, e vão construindo a história pouco a pouco, de forma fragmentada.
    Depois da separação dos pais, em 1968, Martim, então com 16 anos e na companhia do pai, muda-se de São Paulo para Brasília. Sua mãe, com quem sua relação afetiva era mais forte, muda-se, juntamente com um artista que passou a namorar após o término do relacionamento com o pai, para um lugar desconhecido. Na capital recém-criada, Martim vai construindo seu cotidiano, marcado pela relação árida e distante que mantém com o pai, pela saudade da mãe, pelas amizades que vai fazendo no colégio, tudo permeado pelo clima tenso da ditadura militar.
    Martim vai se envolvendo com a cidade de forma lenta e passa a fazer parte de uma turma de estudantes engajados, que além de montar peças de teatro também publica mensalmente uma revista de resistência ao regime militar. Numa crescente que revela seu desenvolvimento e sua formação rumo à maturidade, inicia o contato com o grupo de forma tímida e depois vai desenvolvendo as amizades e, inclusive, o namoro com Dinah. Apesar do entrosamento com os colegas ir melhorando, Martim parece sempre se manter meio alheio à empolgação e ao entusiasmo do grupo enquanto resistência ao regime. Mas esse relativo distanciamento não faz com que o protagonista se livre da perseguição imposta pelo governo a estudantes, intelectuais e artistas. Na reta final da trama o exílio deixa de ser uma opção e passa a ser necessário, inclusive para Martim. Os desdobramentos dessa expatriação, provavelmente veremos nos próximos volumes da trilogia.
    Um aspecto interessante no livro são as referências à literatura, às artes plásticas e à cultura geral que Hatoum nos traz através de alguns personagens. Em contato com Jorge Alegre, dono da livraria Encontro, e com o embaixador Faisão, pai de um amigo, Martim vai descobrindo poetas, romancistas, filósofos, pintores. Além de nos brindar com essas referências, o autor também homenageia personalidades que certamente foram importantes em sua formação enquanto escritor.

    A noite da espera, no quesito experimentação, nos traz um Milton Hatoum ainda mais seguro e ousado do que nas obras anteriores. O autor se dá o direito de experimentar, fazendo esse livro em formato de diário. Quanto à contemporaneidade da obra, que parece ter sido escrita justamente nos anos imediatamente anteriores a esses momentos sombrios vividos pela sociedade brasileira desde meados de 2016, que se vê ameaçada em vários momentos pelo fantasma da ditadura e da repressão, o que ocorreu de fato foi uma coincidência feliz. Coincidência sim, pois a obra foi iniciada há décadas e só agora terminada. Coincidência feliz, sim, pois nesses tempos de trevas, uma obra dessa nos traz esperança, pois nos lembra que já passamos por períodos históricos tão nefastos como o que estamos vivendo agora e superamos.

19 de mar. de 2020

O filho de mil homens - Valter Hugo Mãe

Na parte do prefácio destacada na contracapa deste livro, o escritor argentino Alberto Manguel já nos anuncia uma história bonita, dizendo que "Cada personagem, que num convencional romance de viés documental ou sociológico seria um exemplo de injustiça social ou de transtorno psicológico, é na obra de Mãe um símbolo de libertação e triunfo pessoal, uma demonstração das infinitas possibilidades da alma e da imaginação humanas." 

O primeiro capítulo (O homem que era só metade) nos traz a figura do pescador Crisóstomo, morador duma casa azul em frente ao mar, um homem que [...]"chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho", dizendo pra si e pra quem pudesse ouvir que se sentia pela metade. Um dia rezou para a natureza, que sabe de tudo, pedindo encontrar um filho, já que dos seus amores fracassados não houvera brotado o fruto, e sentiu que a natureza, mãe de todos, o atenderia. Interessante a informação, adquirida em entrevistas do próprio autor, de que quando escreveu a obra, Valter Hugo se encontrava na entrada dos quarenta, assim como seu personagem, e também sentira mais que a vontade, a necessidade de ter um filho. 

No capítulo dois (O filho de quinze homens) temos como personagem central uma anã. Habitante de uma pequena vila, a pequenina mulher, portadora de dores terríveis nos ossos principalmente durante as mudanças de estação, vive solitária em sua casa, mas recebe constantemente a visita das vizinhas, supostamente sempre preocupadas com a saúde e bem-estar da pequena. A anã compartilha um dia o desejo de ter um filho e as vizinhas estranham, assim como estranham ainda mais o fato da pequena possuir em seu quarto uma cama de casal de tamanho normal. Pensam as vizinhas que a anã deveria ter uma cama  pequena e não uma cama grande onde coubesse um homem de tamanho normal. Quando a anã fica grávida, a vizinhança se afasta, com exceção do médico local, a quem a pequena confessa que pelo menos quinze homens da vila (inclusive os maridos das vizinhas 'cuidadosas') podem ser o pai da criança. Por que tivera relação com tantos? Se houve algum abuso ou se foi totalmente consentido fica a critério de cada leitor decidir, mas o fato é que ao dar a luz a anã morre. O velho Alfredo, viúvo de Carminda, que sempre quisera ter um filho, adota o bebê, chamado Camilo, para quem afirmará para sempre ser seu avô, a quem dará uma educação formal, afirmando que os livros podem mudar o mundo e curar doenças.

No terceiro capítulo (A mulher que diminuía) conhecemos a história de Isaura, a mulher enjeitada,  filha de Maria, a mulher do sotaque afrancesado. Prometida em casamento ao vizinho, Isaura passa a namorá-lo com 16 anos. Resiste às investidas do rapaz -que dizia que não se casaria com ela caso não fizessem sexo antes do casamento - durante um bom período. Num dia de muito calor, em que cede à chantagem e a tentação, Isaura conhece o que ouviu chamar de amor e não gosta da experiência ensanguentada e dolorosa. Gosta menos ainda ao perceber que após o ato, seu noivo passa a desprezá-la e seus pais, ao descobrirem o ocorrido, pegam desgosto por ela e pela vida. Isaura entristece e emagrece. Era como se diminuísse.  

O capítulo quatro (O filho da Matilde) nos apresenta Antonino, o filho da Matilde. Delicado e sensível, chamado de maricas pela população da vila, sofre várias violências ao longo de sua até então triste vida. Num dia em que andava próximo a um ribeirão e parou para ver os trabalhadores braçais se banharem, foi espancado por estes e sua mãe Matilde (que perdera o marido quando Antonino ainda era bebê) teve de ir buscá-lo. Ao chegar em casa, trancou-o no quarto como um prisioneiro, mostrando toda a insatisfação de ter um filho assim, maricas.

Esses quatro primeiros capítulos aparentemente são independentes e podem ser lidos, inclusive, em qualquer ordem. A partir do capítulo seguinte as histórias começam a se juntar. A história desses personagens marginais na vida real poderiam ter um desfecho trágico ou triste e comum. O que esperar de fato de um filho de uma anã morta no parto, adotado por um velho e novamente órfão aos 14 anos, sem nenhum familiar para lhe amparar? E de um homossexual que não é aceito nem pela própria mãe? De uma mulher que perdeu a virgindade antes de se casar e que não encontra mais nenhum pretendente, numa sociedade extremamente conservadora? De um pescador de 40 anos, sem filhos, sem família?

Valter Hugo Mãe, porém, mostra através de sua arte que a vida pode ser mágica e os finais felizes. Na junção dessas histórias, fazendo um resumo bem reduzido, apenas para que eu consiga me lembrar com detalhes do livro no futuro, o enredo fica assim: Crisóstomo encontra Camilo procurando emprego junto aso pescadores após a morte do velho Alfredo e adota o menino; Isaura, enjeitada por todos os homens se casa com Antonino mas este desaparece logo após a cerimônia, ainda na noite de núpcias; Isaura cai em tristeza e recolhimento; Crisóstomo deixa de ser metade e passa a se sentir inteiro com a presença do filho, mas ainda insatisfeito, passa a querer se sentir em dobro; Isaura se sente infinitamente triste e vai definhando, até que um dia sai da zona rural onde mora, atravessa a pequena vila e chega à praia, senta na areia e ora pra natureza; na praia, Crisóstomo encontra Isaura rezando e pelo fato dela estar sentada exatamente no local onde ele costuma orar, não lhe sobra dúvida de que ela é a mulher enviada que vai fazê-lo se sentir em dobro; forma-se então a família de Isaura, Crisóstomo e Camilo, que ainda conta com o Antonino, que volta do sumiço e é finalmente aceito. Há ainda o caso da caseira da Matilde e seu casamento malogrado com o velho Gemúndio; no almoço de casamento a caseira resolve matar a galinha mágica gigante de Gemúndio e acaba morrendo junto; com isso, a Matilde, que carrega o conflito de não ter criado corretamente o filho Antonino tem sua segunda chance e adota Mininha, a filha da caseira morta. Uma grande família é formada, então, por laços não consanguíneos. Uma família formada por laços de afetividade.

O que se destaca neste livro, além do rico enredo, do clima de esperança e do desfecho feliz, é a prosa poética do autor. Há também embutida na história uma crítica à sociedade a aos costumes. Mãe se deu o direito de ter seu momento esperançado. Já dizia Ferreira Gullar que a coisa mais fácil do mundo é ser pessimista. Valter Hugo Mãe escolhe a coisa difícil e cruza o caminho das pedras, encontrando a felicidade ao final e no caminho. 


30 de nov. de 2018

O filho eterno

Escapei desse livro mais de uma vez. Passando os olhos pelas estantes das livrarias, tateei a bem acabada publicação da editora Record em algumas ocasiões. O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza. O título chamava a atenção e havia em mim alguma curiosidade pelo autor, sobre o qual eu já havia lido ou ouvido algo a respeito. Em 07/10/2017, enfim, num passeio com a esposa grávida (ainda não sabíamos da novidade) pela Livraria Empório Cultural no Shopping Boulevard Bauru, comprei o livro. Era uma manhã nublada de um sábado primaveril. A fase chuvosa do ano chegara e a leitura me chamava. Eu precisava muito disso e sabia que havia chegado a hora.

Durante alguns dias, carreguei o livro comigo pra onde quer que eu fosse. Lembro de um passeio no SESC Araraquara, em que cheguei antes da hora de abertura do espaço e fiquei  lendo enquanto aguardava, dentro do carro estacionado na rua lateral, sob uma árvore gostosa. Lembro também de um domingo de manhã em que fiquei lendo sentado num dos bancos rotos do Parque Infantil enquanto os aspirantes a atleta davam voltas em torno do parque. Lembro de vários trechos lidos em voz alta pra esposa grávida (agora já sabíamos!) e dos medos que as páginas nos traziam, já que estávamos a esperar um bebê ainda de poucos meses.

O livro conta a história de um aspirante a escritor (o próprio Tezza, vestido de personagem de sua própria obra) que tem um filho com Síndrome de Down. A doença só é descoberta após o nascimento da criança e o choque inicial é terrível. Aos poucos, porém,  a dificuldade em lidar com a situação, narrada em terceira pessoa de forma nua e crua, vai dando lugar a um amor crescente. O desespero do pai na cena em que o filho escapa para a rua e fica desaparecido por alguns instantes é de derreter corações gelados. A partir dali o pai percebe o quanto ama aquele filho diferente. Aquele filho eterno.

Levei um mês pra concluir a leitura, entre 07/10 e 07/11/2017. Não li com a mesma voracidade da infância e adolescência, nem com a mesma displicência da juventude. Li devagar, saboreando, parando de propósito, mesmo quando a vontade era continuar, pra poder prorrogar o tempo de prazer e solidão. Li com sabedoria, com experiência, vivenciando cada página, identificando aqui e ali semelhanças entre o pai, sem nome na história, e eu. Li deixando marcadores nas páginas mais mágicas, pra poder voltar depois e reler, certificando-me de que realmente aquilo se encaixava tanto ao meu sentimento e à minha razão que poderia ter sido escrito por mim mesmo, caso eu tivesse esse talento. Chorei ao terminar o último capítulo. Foi um choro contido, maduro e conformado. Um choro de quem vem desfrutando o prazer da maturidade e volta a se emocionar como uma criança que descobre no prazer da leitura um mundo sem tamanho e tão interessante quanto à vida real.

29 de nov. de 2018

Lorde - João Gilberto Noll

Um escritor brasileiro é convidado por uma instituição educacional da Inglaterra a passar uma temporada em Londres. As passagens aéreas serão pagas pela instituição, assim como a hospedagem na cidade inglesa, além da alimentação, bancada através de uma pequena mesada. Tudo muito legal, exceto pelo fato de que o escritor brasileiro não sabe ou não entendeu exatamente qual será sua missão no exterior. Não obstante, ele vai.

Um começo assim poderia nos remeter a uma história de mistério, ou a um romance policial. A viagem do personagem de Noll (que certamente tem algo de autobiográfico), entretanto, é solitária e intimista. A narração é introspectiva e nos traz unicamente a impressão que o protagonista-narrador tem das situações, misturando a realidade que ele vê e vive com as coisas que ele pensa e imagina. Algo bem nebuloso, obscuro e, não poucas vezes, irreal ou surreal.

Chegando ao aeroporto de Heathrow, o viajante brasileiro nem tem certeza se realmente o inglês representante da instituição que o contatou estará ali esperando.  Encontra um telefone público, mas antes de completar a ligação, percebe que o anfitrião está ali mesmo, aguardando. Cumprimentam-se e partem de trem para a área central da cidade e, a partir dali, de táxi para o local onde o brasileiro ficará hospedado, um apartamento em cima de um restaurante vietnamita, numa esquina do Hackney, bairro londrino habitado por imigrantes do terceiro mundo, pedaço da cidade não contemplado nos mapas turísticos.

Os primeiros dias do narrador-protagonista em Londres são, a meu ver, de relativa lucidez. Ele tenta se organizar no apartamento. Compra um espelho que pendura na parede do banheiro, sobre a banheira. Sente-se incomodado com a cara que aparece ali, envelhecida e cansada. Resolve comprar um kit de maquiagem pra dar uma retocada na carcaça. Não satisfeito, tinge o cabelo. Qual o desejo desse homem? Aproveitar essa estada num país distante pra se transformar, pra ser uma nova pessoa? Quem de nós nunca teve esse desejo ao fazer uma viagem ou ao mudar de cidade? Pois é!   

No decorrer do livro a pequena lucidez inicial se dilui até desaparecer e dar lugar a uma esquizofrenia surreal, ao mesmo tempo em que o próprio personagem vai se degradando. Certo dia o anfitrião inglês aparece no apartamento e diz pro escritor brasileiro não se preocupar, pois será levado a um hospital. O protagonista fica sendo medicado por algumas horas. Sai do hospital e entra no Museu Britânico. Volta pro apartamento em Hackney. O vietnamita, dono do apartamento, bate à porta e diz que veio medir a janela, pois providenciará uma cortina. Depois, saído de um sono profundo, o protagonista abre a geladeira, toma água pelo gargalo e repara que está num momento de ereção, após muito tempo; ali mesmo, se alivia em três, quatro socadas. Essa é a linguagem de Noll. Segundo ele mesmo, a literatura deve sim se ocupar daquelas coisas escondidas no dia a dia das pessoas; a literatura deve falar o que nas relações cotidianas não se diz.

 Em certo momento, e é difícil precisar a ordem dos acontecimentos na obra - já que não se sabe se as ocorrências se passam num tempo cronológico ou num tempo psicológico-, o telefone toca e um certo professor Mark fala ao outro lado da linha, dizendo que gostaria de uma entrevista com o escritor brasileiro, convidando-o a fazer-lhe uma visita. O professor topa e parte ao endereço indicado, uma rua que continua após a London Bridge, na parte sul da cidade. Antes de partir, porém, vira o espelho ao contrário, como se a daquele momento em diante não quisesse mais saber exatamente quem era, ou quem havia sido até então.  Na casa do professor Mark, eles tomam chá na sala. O inglês diz que soube através de um amigo da vinda do brasileiro a Londres, diz que precisa de um banho e pede que o protagonista o acompanhe e que entre na banheira com ele, ao que o brasileiro chora e diz que não saberia dividir sua nudez com ninguém. O choro, nesse ponto, me parece simbolizar alguém reprimido que já se descobriu homossexual, no caso, mas não consegue se libertar e vivenciar a experiência que o corpo está pedindo.

Sai transtornado da casa do professor Mark e vaga pela cidade, encontrando um mendigo à beira da morte. Tenta ajudar e sai com o cachecol molhado da chuva e  do sangue do mendigo. Passa dias perambulando pelas ruas de Londres, correndo atrás de pombos na Piccadilly Circus até que resolve ir até a instituição que lhe convidara para essa estada na cidade. Fica ali a observar e não entra. E resolve voltar à Hackney. Chegando ao apartamento, vê que o inglês que o encontrou no aeroporto, seu anfitrião, está ali jantando com uma mulher. Dorme num canto da sala para que o inglês e a amante possam usufruir do quarto com cama de casal. Na manhã seguinte, a dupla já abandonou a casa. Dias depois o protagonista fica doente, de cama, e o anfitrião fica a cuidar dele por dias, dando-lhe comida na boca, limpando inclusive suas partes íntimas. Posteriormente esse mesmo inglês se suicida, jogando-se de uma ponte no Tâmisa. Sem seu provedor em Londres, o brasileiro resolve abandonar a cidade. Rouba um homem no metrô e com o dinheiro adquirido parte pra Liverpool, onde fica hospedado num hotel chique. É reconhecido na rua por um leitor que conhece obras latino-americanas. É convidado para dar aula na Universidade da Cidade de Liverpool. Num pub conhece George, um ex-estivador de fato ou imaginário e finalmente leva a cabo uma relação homossexual (real ou imaginária? com o outro ou com ele mesmo?). 

São várias ocorrências simbólicas e essenciais pra um livro de cento e poucas páginas. É difícil resumir. Qual o significado dessa obra? Há todo um simbolismo que nos leva a algum lugar ou se trata apenas de um esquizofrênico falando de coisas da vida segundo sua percepção absolutamente distorcida de mundo? Não consigo saber. Confesso que a leitura de Lorde não foi tão prazerosa quanto a de Harmada, mas foi, seguramente, mais impactante. Noll veio pra ficar em minha vida.

   





   

20 de nov. de 2018

Mãos de Cavalo - Daniel Galera

Meu primeiro contato com a escrita de Daniel Galera foi através do seu Mãos de Cavalo. Na época em que li (2008 ou 2009, acho) eu era frequentador constante do SESC Araraquara. Pegava a bicicleta e saía da Avenida Augusto de Campos, quase no extremo leste da cidade, rumo ao SESC, lá do outro lado do mapa (pouco mais de 6 km, vejo agora). Prendia a bike com a corrente envolta por uma proteção de borracha de mangueira feita pelo meu pai no bicicletário do clube e ia até a biblioteca dar uma folheada nos jornais.

Num desses dias passei os olhos com atenção pelos livros disponíveis para retirada na parte da estante de madeira reservada à literatura nacional. O título Mãos de Cavalo me chamou a atenção imediatamente. Retirei-o da prateleira e a arte da capa¹, que a princípio me pareceu a imagem de um retorcido emaranhado de ossos secos, me arrebatou de vez. Peguei o livro emprestado.

A leitura do primeiro capítulo, O Ciclista Urbano, não fluiu fácil de primeira. A riqueza de detalhes me fez resistir por breve momento. Fazia tempo que não me entregava de verdade a um livro e acho que aquela resistência inicial pode ter sido uma espécie de auto boicote ou de fuga. Livros podem doer, podem deixar marcas pra sempre, podem mudar rumos e nos levar pra caminhos e paisagens que não estamos preparados pra percorrer e ver.


Depois que a leitura engrenou, entretanto, eu poderia ter lido tudo numa tacada só. Mas demorei alguns dias, pra poder digerir bem os capítulos tão ricos em imagens e tão chocantes. Lia um capítulo, repassava, ficava degustando as sensações trazidas, cicatrizando os impactos e depois seguia em frente. Levei uma semana ou dez dias pra terminar as duzentas páginas nesse saborear sofrido.


Hermano, o protagonista, é retratado no livro em três fases da sua vida (infância, adolescência e vida adulta). A história vai e volta. Pula da infância pra adolescência e pra vida adulta (não necessariamente nessa ordem), depois volta e assim por diante.


Me envolvi muito com a história. A jornada de Hermano em busca de identidade e, posteriormente, de redenção, é, certamente, e de certa forma, a jornada de todos nós, criados nos anos oitenta, nas capitais ou no interior. Desde sua versão criança - desbravando a parte que lhe cabe da Porto Alegre de sua infância perigosamente montado em uma bike - passando por sua versão adolescente - que numa partida de futebol entra de sola no vilão do momento e depois se acovarda - fechando em sua versão adulta - profissionalmente bem sucedido - a busca de identidade e sentido nunca cessou. Será que em nossas vidas reais essa busca e necessidade um dia cessará? Continuemos vivendo a vida e os livros! Esse Mãos de Cavalo vale a pena!


1-A capa, na verdade, é a foto de galhos - e não de ossos -, retirada dos arquivos do fotógrafo americano já falecido Brett Weston

20 de set. de 2018

Harmada - João Gilberto Noll

O protagonista/narrador, ainda jovem, na faixa dos 20 anos, numa caminhada pelas areias do mar, conhece Bruce, que lhe pergunta a localização da Praia Breve e de determinado teatro. O protagonista, que já quer ser ator, trava imediatamente amizade com o estranho (filho de pai americano e mãe brasileira ou vice-versa) e logo estão encenando um espetáculo juntos.

O narrador errante faz, então, carreira como ator e segue vagando pela vida. Um dia, anos depois, leva Bruce por uma trilha e em determinado espaço alagado, como que num ritual, se enche de lama, encenando pra sabe-se lá que deus. Bruce o leva pra casa e o ajuda a se lavar. E então o narrador desaparece daquele cenário.

Ainda errando, arruma emprego no escritório de um representante comercial de uma firma de enlatados. Bate à máquina contas comerciais, casa-se com a sobrinha do patrão, não consegue ter filhos (o espermograma revela friamente o problema). O patrão morre e no enterro o narrador errante percebe que, além do emprego, perdeu a mulher, que desaparece com um garoto muito mais jovem.

Desnorteado ainda e sempre, o protagonista sem nome, passado e características físicas definidas vai parar num asilo de mendicidade. Passa anos ali, em meio a asilados mais velhos, e uma das distrações dessa fase é fazer contações de histórias aos colegas quinzenalmente após os jantares. Até que reencontra Cris, agora adolescente, que vai parar naquele asilo. Ela não se lembra dele. Ele sim se lembra dela. A conheceu numa noite de aventura que se iniciou no camarim de um teatro e desembocou no quarto de hotel da atriz principal, que tinha uma filha bebê, justamente a adolescente recém chegada ao asilo.

Agora estão ali e um sopro de vida e criatividade o faz querer fazer de Cris uma atriz. Fogem do abrigo e vão parar na casa de Bruce, que os acolhe. Montam a peça, ganham dinheiro, Cris vai morar com o namorado e o narrador vai morar num apê e deixa a casa de Bruce. Dentro do apê há um garoto surdo-mudo que leva o protagonista a um prédio roto e úmido. Quando toca a campainha do lugar, quem sai é Pedro Harmada, fundador da cidade de Harmada séculos atrás. E o resto é um ponto final. Mas o que vale mesmo é a percorrida, mais que a chegada.

Definitivamente o que foi lido acima não é o que se lerá em Harmada. A narrativa dessa obra magistral de Noll não se desenvolve assim, cronologicamente. Esse é só um arcabouço lógico e histórico que criei, juntando as partes espalhadas pelas páginas para que quando me perguntarem do que se trata esse livro que tanto gostei e de que tanto falo eu tenha algo a dizer.

No livro, a história se desenvolve fora de ordem. O protagonista errante vai narrando fatos de sua vida sem compromisso com a sequência histórica ou com a finalização do relato. Ele sai de determinada situação ocorrida em determinado espaço de tempo para outra situação ocorrida no passado ou no futuro muitas vezes sem terminar de contar 'satisfatoriamente' o relato anterior. Fica no leitor uma sensação de insuficiência, de incompletude, de fantasia, de embriaguez. Vale a pena viajar na obra de Noll. Não se sai ileso dessa viagem. Ficaremos perturbados, mas também deliciados.

    


25 de fev. de 2016

Dom Casmurro

Fugi do Dom Casmurro na época do colegial e continuei fugindo na época do vestibular. Frequentei alguns contos de seu autor em tardes remotas e chuvosas - e gostei - mas não tomava coragem para alçar voos mais altos e encarar longas histórias. Na verdade, não sei bem o motivo, passei batido por todos os clássicos do Romantismo e Realismo brasileiro no período de escola. Não sei também como conseguia me virar nas provas mensais e bimestrais, mas o fato é que apesar da picaretagem, era tido como aluno razoável.
 
Agora, nesse janeiro de 2016, distante mais de uma década (quase duas) daquele estudante fujão que fui, resolvo enfim me dar a chance de conhecer de Machado de Assis algo além dos contos e do quase conto O Alienista. E é fatal começar pelo Dom Casmurro.

A história, ambientada no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, é contada por seu próprio protagonista, o Bentinho, apelidado de Dom Casmurro por conta de sua pouca simpatia e de seu jeito sisudo e solitário. Após viver um amor juvenil com sua vizinha Capitu, nosso personagem principal é obrigado a ir ao seminário, devido a uma antiga promessa de sua mãe. Esse fato traz muito temor e ansiedade ao casal, que se vê separado e teme nunca mais se juntar, caso Bentinho realmente se torne padre. Mas isso não ocorre e os dois se casam e têm um filho. O autor/personagem vai contando toda essa história e busca, através da narrativa, além de relembrar seu passado, levar o leitor a, assim como ele, acreditar que Capitu cometeu adultério.

Como mero leitor em busca de diversão, elejo a parte que fala da juventude pré-seminário de Bentinho como a melhor do livro. A amizade colorida e varonil do protagonista com sua vizinha Capitu, tão poeticamente narrada, me deixou emocionado e saudosista. Fiquei com saudade do adolescente que não fui. Sempre a fugir de contatos mais próximos com as garotas por conta de uma timidez ainda não totalmente superada, fui furtado de ter qualquer experiência real minimamente parecida com as vividas por Bentinho com Capitu, mas nos meus sonhos e pensamentos, quantos momentos emocionalmente similares vivenciei. 

A parte que mais me fez refletir sobre a vida e as relações, porém, foi mesmo a parte final, quando Bentinho passa a desconfiar da traição de Capitu com seu melhor (e talvez único) amigo, Escobar. Fica a cargo do leitor decidir se acredita que a traição realmente ocorreu ou não. Confesso que ainda não decidi categoricamente, mas acho mesmo que tudo foi obra da cabeça doentia e ciumenta do personagem principal da história. E penso isso porque hoje sei e vejo o quanto de amizade, amor, tempo e vida já perdi por ver coisa onde não tem. E sei que continuarei a perder, talvez um pouco menos, se Deus quiser e alguma literatura continuar ajudando.